* Texto do professor Jonatas Ferreira (PPGS/UFPE) publicado originalmente em http://quecazzo.blogspot.com.br/
O Sofrimento e sua medicalização
Sob a designação “medicalização da vida” - ideia que, grosso modo, diz
respeito à conversão de nossa condição biológica em centro de
investimentos políticos, econômicos, morais e existenciais -, um
fenômeno mais específico tem suscitado posicionamentos bastante
diversos. Refiro-me à popularização do consumo de substâncias
psicoativas de última geração, ao tratamento bioquímico de diversos
tipos de mal-estar na contemporaneidade e aos saberes que lhes estão
associados. Como afirmava Max Weber de forma enfática em seus ensaios
sobre religião, e sempre que a questão da teodiceia é ali evocada, a
forma como lidamos com o sofrimento e lhe atribuímos significado não é
um processo cultural qualquer. Sob a influência de Weber, Peter Berger
propõe que a toda racionalização do sofrimento individual em uma
teodiceia mais ou menos coerente subjaz uma dimensão necessariamente
política: “Formulando de modo diferente, cada nomos acarreta uma
transcendência da individualidade e assim, ipso facto, implica uma
teodiceia. Cada nomos confronta o indivíduo como uma realidade
significativa que o compreende e todas as suas experiências. Ela confere
sentido à sua vida, e também a seus aspectos discrepantes e dolorosos”
(Berger, 1967, p. 62). Que a possibilidade do nomos esteja aqui
associada à capacidade de atribuir significado ao sofrimento – uma tese
que nos remeteria também à própria ideia de legitimidade da dominação
tal como a formula Weber - traz o nosso tema para um espaço tenso,
nomeadamente, entre política e cultura, um espaço em que a busca de um
sentido para a vida e suas atribulações parece fundamental. Tudo isso
não é novo, evidentemente. Bem antes destes autores, Platão (1988), num
gesto trágico, pouco típico de seu pensamento, afirmara que a filosofia
consistia em aprender a lidar com o sofrimento maior de nos sabermos
mortais. Mais amplamente, e mantendo o tom weberiano dessas linhas
iniciais, poderíamos dizer que o judaísmo e a filosofia trágica devem
ser compreendidos a partir dessa questão fundamental.
Aquilo que poderíamos chamar de medicalização do sofrimento, pois, e que
se distingue de sua patologização, como veremos adiante, deve ser
considerado algo de relevância apreciável. Por isso mesmo, tal processo
vem suscitando posicionamentos bastante diversos no campo da saúde
mental. De um lado, encontramos críticas à transformação do sofrimento
humano em objeto de negociações biopolíticas, ou seja, em sua
transformação em uma dor que pode ser tratada sem que a questão de sua
significação existencial e política ganhe devido destaque. Sobretudo a
partir do final da década de 1980, com a popularização da fluoxetina, a
chamada “pílula da felicidade”, essa dor passou a ser associada cada vez
mais a uma deficiência química, à dificuldade orgânica que o cérebro de
alguns de nós teria em produzir sinapses devido a uma falha em fabricar
ou preservar serotonina em nosso cérebro. Se entendemos que a condição
humana é necessariamente suplementada pela técnica, parece-nos
importante entender os horizontes políticos e existenciais que se abrem
neste espaço reclamado pela medicina, nomeadamente, o tratamento do
sofrimento humano.
Em que contexto a popularização de soluções químicas para o sofrimento é
culturalmente concebível? Primeiro algumas evidências: segundo dados da
ANVISA, em 2010 foram dispensadas 25.677.892 unidades de algum tipo de
benzodiazepínico no Brasil, um número que corresponde a 135 unidades
para cada 1000 habitantes. Se compararmos esse consumo com dados de
2008, observaremos um crescimento de 325,4%. Na Europa, merece destaque o
caso português, embora ele esteja longe de alcançar as marcas
brasileiras: “Entre os anos de 2000 e 2012, o consumo de antidepressivos
calculado em doses diárias por mil habitantes mais que triplicou e o de
ansiolíticos cresceu 170%. A venda de ansiolíticos, sedativos e
hipnóticos (vulgarmente designados tranquilizantes) aumentou 6%, mas
este continua a ser o subgrupo com maior utilização em Portugal (96
doses diárias por mil).” O aumento mundial no consumo de ansiolíticos e
antidepressivos nos últimos vinte anos, junto com uma mudança nas formas
de diagnóstico de sofrimento psíquico, cristalizados nas últimas
edições do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
(DSM), o fortalecimento de uma psiquiatria voltada para o sintoma, entre
outros fatores, tem se refletido numa transformação cultural importante
e que, em última instância, diz respeito à possibilidade de considerar o
sofrimento como resultante de processos orgânicos, quimicamente
determinados e, em princípio, quimicamente controláveis. Como
interpretar este esvaziamento do sentido, este achatamento do
significado que parece estar na própria raiz de uma interpretação
biológica do sofrimento? O receio que mobilizou uma vertente
interpretativa da sociologia desde sua formação, nomeadamente, a redução
da existência e sociabilidade humanas a uma dimensão meramente
funcional, parecem agora se converter em programa biopolítico. Em todo
caso, parece evidente que, ao esvaziamento do processo de significação
do sofrimento humano, subjaz uma interpretação, uma atribuição de
sentido cuja exegese é parte substancial de nosso esforço.
Acerca deste esvaziamento de sentido, seria possível afirmar, como o faz
a psicanalista Maria Rita Kehl (2010), a existência de um
empobrecimento da experiência subjetiva na sociedade da aceleração e da
contribuição decisiva que o consumo indiscriminado de substâncias
psicoativas oferece para a radicalização desse processo? A ideia de uma
pauperização da experiência é velha conhecida dos leitores de Walter
Benjamin. A gravidade do diagnóstico cultural proposto pela autora de O
tempo e o cão pode ser avaliada se atentarmos para o fato de Benjamin
ter escrito “Experiência e Pobreza” sob o impacto de eventos que jamais
poderiam se converter em Erfahrung, ou seja, em algo significativo tanto
individual quanto socialmente, algo que pudesse ser transmitido. Numa
passagem bastante citada daquele texto, Benjamin observa: “Não, ao menos
isso é claro: a experiência está em queda e isso numa geração que,
entre 1914 e 1918, teve uma das mais tremendas experiências da história
mundial. Talvez isso não seja tão notável quanto parece. Não se podia,
então, constatar que as pessoas chegavam emudecidas do campo de batalha?
Não mais ricos, porém mais pobres em experiência compartilhável”. Esse
tipo de avaliação pode ser encontrada em inúmeros outros intelectuais
que se dedicaram a realizar uma análise crítica da modernidade.
Mencionemos alguns. No Homo Sacer, Giorgio Agamben fala de um
emudecimento similar, do silêncio dos Muselmänner, daqueles que foram
radicalmente reduzidos à sua condição biológica nos campos de
concentração. Também aqui, a guerra é um paradigma para compreendermos
dimensões mais profundas da modernização. A nudez biológica do ser
humano convertida em centro de investimentos políticos, por seu turno, é
um tema que conecta Agamben a Foucault, como é sabido. A crítica
nietzschiana à modernidade, a uma desvalorização de todos os valores,
parece-me, subjaz também à ideia de “pauperização” da vida espiritual
(Geistesleben), sobre a qual Georg Simmel discorreu nos seguintes
termos:
"O fundamento psicológico sobre o qual se eleva o tipo das individualidades das grandes cidades é a intensificação da vida nervosa, que brota da mudança acelerada e ininterrupta das impressões interiores e exteriores. O homem é um ser da diferença, isto é, a sua consciência é espicaçada por meio da distinção da impressão momentânea em face da precedente; as impressões persistentes, a insignificância das suas diferenças, a regularidade habitual do seu decurso e dos seus contrastes desgastam, por assim dizer, menos a consciência do que a apressada aglomeração de imagens mutáveis, a distância brusca no interior daquilo que se abarca com um olhar, o imprevisto das impressões que se impõem".
Devemos situar, portanto, o tipo de apreciação proposto por Maria Rita Kehl em uma tradição de crítica social na qual o empobrecimento da vida subjetiva era considerado um efeito do processo de industrialização, da modernização das sociedades ocidentais. As referências poderiam se multiplicar. Citemos de passagem a observação marcuseana acerca da perda de uma dimensão negativa e crítica nas sociedades industrializadas, a constituição de um homem unidimensional (Marcuse, 2002), achatado por uma exacerbação e ao mesmo tempo por uma domesticação do princípio do prazer, este indicador da vida libidinal que vem à luz para ser colocado a serviço do consumo de mercadorias que o capitalismo não para de multiplicar; citemos ainda a ideia de colonização do mundo da vida pelos sistemas tecnológicos, de que fala Habermas (s/d). No campo das artes, toda uma geração de artistas expressionistas e surrealistas denunciaram em suas obras esse mesmo processo de forma contundente.
Por outro lado, encontramos aqueles para quem parece suspeita toda essa recusa em considerar a base bioquímica do sofrimento. Ora, lendo-o com certa liberdade, em Hominescências, Serres nos alerta para o fato de, ao longo dos séculos, a busca de um sentido para a dor - e as diversas reflexões sobre a teodiceia são aqui um exemplo - dever-se em larga medida a não dispormos, durante séculos de história humana, de recursos técnicos capazes de mitigar ou controlar as causas de padecimentos físicos que hoje, em grande medida, são controláveis. Extrapolando esta linha de argumentação, é bem conhecido o trabalho de Robert Spitzer, sua busca por algoritmos que possam atestar de modo categórico a ocorrência ou não de transtornos psíquicos nos indivíduos, e as afinidades que há entre este trabalho e uma inflexão da psiquiatria estadunidense no sentido de encontrar as causas biológicas do sofrimento. O fato de que a palavra usada para falar do sofrimento humano seja transtorno, ou, numa tradução mais literal, desordem (disorder), evidentemente é algo importante. A qualidade funcionalista e branda do termo - e que já se encontra nas primeiras versões do DSM, se o compararmos ao termo doença - é capaz de sinalizar para um processo difíceis acomodações de perspectivas dentro da Associação Psiquiátrica Americana (Cooper, 2005, p. 8 e seq.). O peso desse estigma pode ser percebido na discussão que a psiquiatria estadunidense travou acerca do caráter patológico ou não do homossexualismo. Nas versões I e II do DSM, a visão oficial da Associação Psiquiátrica Americana era de que o homossexualismo constituía uma doença mental, sendo pois classificado como "Personality Disorder and certain non-psychotic mental disorders", junto com fetichismo, pedofilia, travestismo, exibicionismo, voyerismo, sadismo e masoquismo.
“This category is for individuals whose sexual interests are directed primarily toward objects other than people of the opposite sex, toward sexual acts not usually associated with coitus, or toward coitus performed under bizarre circumstances as in necrophilia, pedophilia, sexual sadism, and fetishism” (APA, 1968, p.44)Sob pressão do movimento gay nos EUA (Cooper, 2005), o comitê que elaborou o DSM III resolveu, a partir de sugestão de Spitzer, reconsiderar tal percepção do homossexualismo, e sintomaticamente, tratá-lo como transtorno, apenas quando o indivíduo se sentisse infeliz com esse tipo de orientação sexual. Ora, isso parece bastante sensato, embora quando levado à risca tal critério acarrete novas dificuldades: a pedofilia deveria ser tratada da mesma maneira? A resposta da comissão que elaborou o DSM III é clara, neste ponto: a pedofilia só pode ser considerada um transtorno mental e, portanto, sujeito a uma intervenção psiquiátrica, quando essa prática trouxer sofrimento ao pedófilo. Para os formuladores do DSM III, obviamente, isso não significa que esse tipo de conduta sexual deixe de ser moralmente condenável e passível de punição legal. Pelo contrário.
De qualquer modo, o critério para se decidir acerca da necessidade de tratamento psiquiátrico e medicamentoso passa a ser a autopercepção do sofrimento, o que é uma forma de deslocar a intervenção médica para um contínuo em que a existência de fronteiras entre normalidade e patologia é difícil de ser estabelecida. A psiquiatria passa, neste sentido, a ser mais facilmente associada ao tratamento da neurose. A ideia de transtorno, neste sentido, é bastante similar à de disfunção, como na expressão “disfunção erétil”, conceito que substitui a ideia de impotência sexual. Qualquer insatisfação com relação à performance é, em princípio, medicalizável, pois no fundo nossa tolerância com respeito ao sofrimento é o fator que define a necessidade de intervenção médico-medicamentosa. No que pesem as tentativas um tanto arbitrárias que as versões do DSM realizam de estabelecer critérios mediante os quais uma tristeza passageira possa ser cientificamente diferenciada do transtorno - um período de tempo razoável, níveis de acometimento etc. -, as fronteiras entre normalidade e patologia num sentido muito claro são esgarçadas. Este fenômeno, por um lado, certamente atua no sentido de atenuar o estigma que cerca a “doença psíquica”, por certo, mas também torna o sofrimento algo passível de medicalização – o que tem um impacto direto no aumento do consumo de psicofármacos no mundo. Um psicólogo lisboeta indagado sobre como definir os limites entre normalidade e patologia num contexto como este, respondeu-me: "vou usar uma medida para saber se a pessoa está a funcionar ou não". A esse respeito, lembremos de Pierre Fedida (2003). Ele sustenta, a partir dos pressupostos fenomenológicos de sua reflexão psicanalítica, que “não funcionar”, deprimir, por exemplo, pode ser um sinal de saúde, sobretudo, sugerimos nós, quando as necessidades de funcionamento do próprio capitalismo levam ao adoecimento. A depressão, seu mergulho numa temporalidade psíquica muito particular, ou seja, em um tempo que não passa, seria uma tentativa básica de encontrar uma zona de proteção mínima com relação a contexto técnico em que a aceleração da aceleração se tornou uma realidade.
“Aqui, vamos levantar uma hipótese: a da diferença que deve ser estabelecida entre a depressividade inerente à vida psíquica (a vida psíquica é depressiva no sentido em que garante proteção, equilíbrio e regulação à vida) e o estado deprimido, que representa uma espécie de identificação com a morte ou com o morto” (Fedida, 2002, p. 14).Neste ponto, postulamos a seguinte linha de argumentação: o psicofármaco é um dispositivo, tal como o entendia Foucault. Para circunscrever o que ele entende por essa noção que se encontra ao longo de sua obra, recorramos a Giorgio Agamben (2009, p. 33-34) : “Os dispositivos são precisamente o que na estratégia foucaultiana toma o lugar dos universais: não simplesmente esta ou aquela medida de segurança, esta ou aquela tecnologia do poder, e nem mesmo uma maioria obtida por abstração: antes, como dizia na entrevista de 1977, “a rede (le réseau) que se estabelece entre estes elementos”.” Assim, do mesmo modo que o cultivo da soja transgênica Roundup Ready implicou, no Brasil, entre outras coisas, uma articulação entre o uso de herbicidas e adubos específicos, a decretação de uma Medida Provisória pelo Governo Federal que regulamentou o cultivo deste grão transgênico, a pressão de grandes agricultores, o uso dos meios de comunicação de massa pelas partes interessadas etc., o psicofármaco é um dispositivo que mobiliza, além de pesquisas científicas, propaganda, a mudança de uma forma de regulamentação do diagnóstico psiquiátrico, além da produção e circulação do medicamento. Mas não apenas, nem sobretudo, este último. Os algoritmos de que fala Spitzer, neste sentido, são, não apenas relevantes, mas um elemento central da lógica mais ampla que articula o próprio dispositivo: mapear, identificar e controlar o sofrimento.
“The Patient Health Questionnaire (PHQ) is a 3-page questionnaire that can be entirely self-administered by the patient. The clinician scans the completed questionnaire, verifies positive responses, and applies diagnostic algorithms that are abbreviated at the bottom of each page. The PHQ assesses 8 diagnoses, divided into threshold disorders […], and subthreshold disorders”.
O desdobrar deste tipo de raciocínio pode ser comprovado nas versões do DSM que se seguiram à sua terceira versão – projeto no qual Spitzer desempenhou um papel importante, nomeadamente, o de presidente do comitê que o elaborou. O sentido geral do empreendimento era criar categorias analíticas claras que pudessem estabelecer um padrão internacional de diagnóstico de transtornos mentais, à semelhança da International Classification of Diseases. Trata-se pois fornecer “critérios somáticos explícitos”, e universalizáveis, capazes de servir sem ambiguidades ao diagnóstico dos transtornos mentais.
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