Escrevendo
outro dia a um velho amigo me ocorreu lembrar que os animais se domesticam
facilmente com um chicote na mão direita e um torrão de açucar na esquerda. Os
vegetais querem tesoura e estrume. (...)
Para uns é
preciso que o chicote entre na carne, para outros basta que sibile no ar - para
muitos basta que o chicote exista. Uns se jogam de quatro para lamber farelos
de açucar preto, outros recebem com ares de dignidade alvos tabletes
refinadíssimos, uns se limitam a ficar mansos, outros aprendem proezas e dão
espectáculos graciosos. (...) E a floresta magnífica de homens se muda em praça
paris com sofás de fícus e caixas de pó-de-arroz de fícus, guarda-chuvas de
fícus, toda uma alucinação idiota de formas obedientes e escravas - de fícus.
Cortais a
tesoura e serrote as folhas e palmas de uma palmeira, cravai-lhe no tronco o
machado - ela não vira borboleta, nem vaso, é uma palmeira que morre, uma
coluna partida, pois a árvore mutilada guarda a dignidade de árvore. (...) Há
homens assim. Há os que se adaptam mas não se acostumam, se submetem mas não se
servilizam, os vencidos jamais convencidos. E há os fícus. Os que poderiam ser
gigantes, e gostariam de ser gigantes e sentem com amargura e revolta o
primeiro corte da tesoura. Mas o tempo passa, a vida é curta e a tesoura é
certa. Então o desgraçado já não espera a tesoura. Ele mesmo fica sendo sua
própria tesoura. (...)
Que as
forças mais profundas da terra se revelem numa espantosa arrebentação, num
terramoto de raízes revoltadas, e a floresta dos homens se embeba com os uivos
do vento e as águas da tempestade, e se contorça e se enfureça num bracejar
medonho de galhos subitamente libertados e caia por terra, pisado, esmagado, o
rei da tesoura e do estrume, do chicote e do torrão de açucar.»
Rubem Braga, Um pé de milho (1946)
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