Pular para o conteúdo principal

Homo lattes: Problemas em concursos para professores são reflexo da estrutura produtivista e burocrática das universidades públicas nacionais

Por Sérgio Bruno Martins

Em artigo publicado neste caderno na semana passada, o professor Angelo Segrillo toca num ponto delicado: os processos de seleção para professores em universidades públicas. Trazendo a público um “segredo de polichinelo”, ele relata que não é raro acontecerem concursos claramente “arranjados” para favorecer candidatos ligados a grupos específicos e outras artimanhas do gênero. Contra esse quadro patrimonialista, sugere Segrillo, o ideal seria aproveitar o atual clima de insatisfação “com todo tipo de corrupção no país” para se propor mecanismos mais transparentes, impessoais e padronizados; uma possibilidade aventada é a criação, pelo Ministério da Educação, de uma comissão independente para este fim.

Concordo integralmente com Segrillo a respeito da necessidade de enfrentar abertamente essa questão. No entanto, creio que o enfoque na corrupção perde de vista sua dimensão mais fundamental: a estrutura acadêmica da qual o atual modelo de concursos públicos faz parte. A ênfase na moralização dos concursos não só deixa intocada tal estrutura, como tende a reforçá-la; é como se nada em seu cerne merecesse crítica, faltando apenas azeitar melhor a máquina através de um controle mais rigoroso das pessoas que nela operam. A palavra de ordem é impessoalidade. Mas será que tudo realmente se resume ao erro humano? E será que tamanha padronização não ameaçaria a diversidade de universidades e departamentos? Não seria o caso de dar um passo atrás e recolocar o problema dos concursos num contexto mais amplo?

Em linhas gerais, o modelo de conhecimento que rege a universidade pública no Brasil hoje pode ser descrito como produtivista e objetivista. Produtivista porque enfatiza a produção constante e abundante, sobretudo na forma de artigos em revistas indexadas. Objetivista porque toda essa produção é qualificada de acordo com uma escala pré-estabelecida de categorias e assim traduzida em pontos. Eis o dogma deste modelo: todo dado qualitativo será redutível a termos quantitativos. E eis seu corolário: o valor de um pesquisador será determinado, de forma análoga, pela soma dos pontos marcados pela sua produção. Nasce assim o Homo lattes, um produtor de conhecimento determinado por toda uma estrutura que não cessa de lhe dizer: “quanto mais, melhor”.


Objetividade enganosa

Numa banca de seleção, isso leva com frequência à seguinte cena: ao invés de ler, analisar e discutir o mérito e a pertinência de um conjunto selecionado de trabalhos de um determinado candidato para a vaga que se quer preencher, o que os examinadores fazem é somar os pontos “contidos” em seu currículo completo (numa aberração adicional, o candidato é obrigado a enviar de antemão um volumoso dossiê de documentos comprovando a autenticidade de todo e qualquer item listado em seu currículo; no trato com a burocracia, o que vige é a presunção de desonestidade). Estranhamente, o que a banca lê durante o concurso não são textos produzidos no dia a dia da pesquisa, mas uma prova com ponto sorteado na véspera. Nesse insólito vestibular para professor, o que é efetivamente avaliado é o desempenho do candidato em condições extremamente tensas e adversas (o que, nos dias de hoje, inclui escrever de próprio punho), e que não se assemelham a nada com que ele vá lidar profissionalmente caso seja selecionado. Somados os pontos (sempre eles...) de todas as etapas do processo, está escolhido, de forma supostamente objetiva, o futuro professor.

O Homo lattes tirando uma pilha de fotocópias comprobatórias e o professor convidado a contar pontos em currículos inchados nada mais são do que duas imagens extremas — mas tristemente normalizadas, porque corriqueiras — do que a academia está se tornando sob os auspícios do produtivismo e do objetivismo. Que formação intelectual pode advir desse contexto? Que ética do conhecimento está implícita aí? Que espécie de saber se pode esperar desse acadêmico burocratizado? Queremos acadêmicos conformados ao que já se conhece, ou capazes de abrir perspectivas críticas e científicas?

É sobre perguntas como essas, e não apenas sobre remédios para a corrupção, que o problema dos concursos deve nos fazer pensar. E, dito isso, vale perguntar também se o patrimonialismo de que fala Segrillo é de fato um defeito pontual no sistema, ou se ele não é em certa medida um produto deste. Afinal de contas, não há álibi mais perfeito para os que conhecem bem os meandros burocráticos e os meios de manipulá-los: a escolha do professor, por mais enviesada que seja, estará sempre legitimada de antemão pela suposta objetividade do processo. Não seria mais interessante abandonar esse mito da objetividade de uma vez por todas e buscar transformar os processos de seleção numa oportunidade de cultivar discussões consequentes a respeito dos rumos de um determinado departamento ou universidade? Será que todo argumento subjetivo deve ser banido da discussão sob suspeita de ser necessariamente escuso? Não é possível imaginar que uma discussão menos mediada por rankings e pontuações possa ter o benefício justamente de trazer à luz as disputas intelectuais e políticas que acontecem e vão continuar acontecendo? Melhor que tentar debelar tais disputas é torná-las parte de uma dinâmica acadêmica mais organicamente engajada com os rumos das universidades.

Assim como o que está em jogo nas manifestações atuais não é simplesmente a corrupção, mas sobretudo uma crise na própria estrutura da democracia representativa (da qual a corrupção é provavelmente um dos sintomas), o problema das universidades também não pode ser reduzido aos desvios de conduta de grupos e indivíduos (que, quando ocorrerem, devem evidentemente ser punidos). É verdade que uma mudança estrutural desse patamar em nossa cultura acadêmica pode parecer com uma montanha a ser movida. É verdade também que isso envolve certas questões que extrapolam o âmbito da universidade (por exemplo: até que ponto é possível resguardar a singularidade profissional do professor universitário em meio às leis que regem o funcionalismo público?). Porém, e creio que aqui estou novamente de acordo com Segrillo, o silêncio certamente não serve ao interesse comum.

Sérgio Bruno Martins é doutor em história da arte pela University College London

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Sua bisavó foi pega a dente de cachorro? Presença indígena na história de Santa Luzia

Rommeryto em aula de Campo na Cacimba da Velha Não foi de poucas pessoas que ouvi a expressão: “minha bisavó foi pega a dente de cachorro”. Se trata de mais uma das características que fazem parte da memória coletiva ou do imaginário do povo de Santa Luzia. Essa expressão, assim como palavras como Yayu, Tapuio, Quipauá são evidências de um passado marcado pela existência de nações indígenas no território que hoje é o nosso município. O historiador santaluziense Rommeryto Augusto fez um brilhante estudo que teve como objetivo: “identificar a ocorrência de povoamento indígena na região conhecida como Vale do Sabugy no período do pós-contato (séculos XVII e XVIII), e sua participação na história e na sociedade destas terras cortadas pelos rios Sabugy e Capauá após a interiorização da colonização” (MORAIS, 2011:9). Segundo o autor, a inquietação sobre a existência de povos indígenas em Santa Luzia vem desde a sua infância e perpassou o tempo tornando-se o objeto de seu trabalho ...

Saída de padre Alex de Santa Luzia repercute nas redes sociais

Centenas de atividades nas redes sociais sobre a saída do Padre Alex Alexandre da Costa Cabral da paróquia de Santa Luzia foram registradas nesta sexta feira (02). Durante missa celebrada  na manhã de hoje o padre tornou evidente a sua saída de Santa Luzia. Durante a homilia o padre fez diversas referências às mudanças que passamos durante a vida e as esperanças que devemos ter diante das situações de desespero, de dor. "Se tirarem os sonhos e os ideais o que restará ao homem?" Questionou o padre ao falar sobre as atitudes que devemos tomar diante das atribulações da vida. Ele fez prestação de contas dos mais de R$ 92.000,00 aplicados na compra das estruturas para as três novas igrejas e anunciou a aquisição também de estruturas para construção de um ginásio poliesportivo no terreno ao lado da igreja do Rosário. "Tudo está pago. Não estamos devendo a ninguém. Estou feliz e de consciência tranquila" destacou o padre ao falar sobre o projeto uma igreja em cad...

Últimos dias de inscrição no Prêmio Professora Aristana de Brito Guerra. Veja como participar:

Estão chegando ao fim as inscrições para a 2ª Edição do concurso de vídeos Prêmio Professora Aristana de Brito Guerra. Os interessados e interessadas em participar têm até o dia 07 de julho de 2018 para gravarem seus vídeos de até  2 minutos, postarem no YouTube e preencherem o formulário de inscrição no site www.eueminhaescola.com .  Este ano os vídeos devem abordar o tema " as águas de minha terra " e podem ser produzidos por alunos e alunas de escolas públicas e privadas de todas as cidades do Vale do Sabugi com  a ajuda de seus professores.   A Comissão lembra que já há vídeos inscritos e que é da responsabilidade dos seus autores o compartilhamento deles nas redes sociais. "Os autores precisam lembrar que o número de visualizações do vídeo no YouTube será utilizado como parte da nota final e, por isso, é preciso estimular os internautas a assistirem as produções. Quando mais plays, mais chance de vencer", destacou professor José Aderivald...