Caros leitores,
Estou de tal modo ocupado que nem o tempo e nem a capacidade criadora de textos e notícias me são favoráveis neste momento. Para deixá-los, ao menos, com algo para ler sugiro esta crônica famosa do Rubem Alves, que embora seja de 1946 tem algo de muita atualidade. Vamos ler e descobrir o quê?
O FÍCUS DO SENHOR
«A cretinice é uma árvore chamada fícus. Um jardineiro sádico, de instintos
miseráveis - um jardineiro que era bem, na sua crueldade e mesquinhez, o
perfeito rei dos animais - inventou a degradação do fícus. Eis uma árvore. Se a
deixais crescer, ela cresce. Não vos pede ajuda - quer apenas a terra, a água,
o ar - e vai crescendo. E o tronco se projecta alto e grosso da base de um
encordoamento enérgico de raízes encravadas no chão, e os galhos partem
oblíquos, e vão lançando ramas, e eis uma árvore nobre entre as mais nobres,
grande, bela e poderosa.
Mas o fícus é apenas um arbusto - e o mesquinho rei dos animais e dos vegetais tem uma tesoura na mão. Esse arbusto jamais será uma bela árvore. Ide à Praça Paris, olhai o jardim, e tremereis de vergonha. Ali não há árvores. Há cubos, há caras de cão, pirâmides, paralelepípedos, poltronas, esferas; se quiserdes haverá telefones, sopeiras, cilindros, (...) - tudo o que quiserdes. Basta ter na mão uma tesoura - e saber.
Escrevendo outro dia a um velho amigo me ocorreu lembrar que os animais se domesticam facilmente com um chicote na mão direita e um torrão de açucar na esquerda. Os vegetais querem tesoura e estrume. (...)
Para uns é preciso que o chicote entre na carne, para outros basta que sibile no ar - para muitos basta que o chicote exista. Uns se jogam de quatro para lamber farelos de açucar preto, outros recebem com ares de dignidade alvos tabletes refinadíssimos, uns se limitam a ficar mansos, outros aprendem proezas e dão espectáculos graciosos. (...) E a floresta magnífica de homens se muda em praça paris com sofás de fícus e caixas de pó-de-arroz de fícus, guarda-chuvas de fícus, toda uma alucinação idiota de formas obedientes e escravas - de fícus.
Cortais a tesoura e serrote as folhas e palmas de uma palmeira, cravai-lhe no tronco o machado - ela não vira borboleta, nem vaso, é uma palmeira que morre, uma coluna partida, pois a árvore mutilada guarda a dignidade de árvore. (...) Há homens assim. Há os que se adaptam mas não se acostumam, se submetem mas não se servilizam, os vencidos jamais convencidos. E há os fícus. Os que poderiam ser gigantes, e gostariam de ser gigantes e sentem com amargura e revolta o primeiro corte da tesoura. Mas o tempo passa, a vida é curta e a tesoura é certa. Então o desgraçado já não espera a tesoura. Ele mesmo fica sendo sua própria tesoura. (...)
Que as forças mais profundas da terra se revelem numa espantosa arrebentação, num terramoto de raízes revoltadas, e a floresta dos homens se embeba com os uivos do vento e as águas da tempestade, e se contorça e se enfureça num bracejar medonho de galhos subitamente libertados e caia por terra, pisado, esmagado, o rei da tesoura e do estrume, do chicote e do torrão de açucar.»
Rubem Braga, Um pé de milho (1946)
Mas o fícus é apenas um arbusto - e o mesquinho rei dos animais e dos vegetais tem uma tesoura na mão. Esse arbusto jamais será uma bela árvore. Ide à Praça Paris, olhai o jardim, e tremereis de vergonha. Ali não há árvores. Há cubos, há caras de cão, pirâmides, paralelepípedos, poltronas, esferas; se quiserdes haverá telefones, sopeiras, cilindros, (...) - tudo o que quiserdes. Basta ter na mão uma tesoura - e saber.
Escrevendo outro dia a um velho amigo me ocorreu lembrar que os animais se domesticam facilmente com um chicote na mão direita e um torrão de açucar na esquerda. Os vegetais querem tesoura e estrume. (...)
Para uns é preciso que o chicote entre na carne, para outros basta que sibile no ar - para muitos basta que o chicote exista. Uns se jogam de quatro para lamber farelos de açucar preto, outros recebem com ares de dignidade alvos tabletes refinadíssimos, uns se limitam a ficar mansos, outros aprendem proezas e dão espectáculos graciosos. (...) E a floresta magnífica de homens se muda em praça paris com sofás de fícus e caixas de pó-de-arroz de fícus, guarda-chuvas de fícus, toda uma alucinação idiota de formas obedientes e escravas - de fícus.
Cortais a tesoura e serrote as folhas e palmas de uma palmeira, cravai-lhe no tronco o machado - ela não vira borboleta, nem vaso, é uma palmeira que morre, uma coluna partida, pois a árvore mutilada guarda a dignidade de árvore. (...) Há homens assim. Há os que se adaptam mas não se acostumam, se submetem mas não se servilizam, os vencidos jamais convencidos. E há os fícus. Os que poderiam ser gigantes, e gostariam de ser gigantes e sentem com amargura e revolta o primeiro corte da tesoura. Mas o tempo passa, a vida é curta e a tesoura é certa. Então o desgraçado já não espera a tesoura. Ele mesmo fica sendo sua própria tesoura. (...)
Que as forças mais profundas da terra se revelem numa espantosa arrebentação, num terramoto de raízes revoltadas, e a floresta dos homens se embeba com os uivos do vento e as águas da tempestade, e se contorça e se enfureça num bracejar medonho de galhos subitamente libertados e caia por terra, pisado, esmagado, o rei da tesoura e do estrume, do chicote e do torrão de açucar.»
Rubem Braga, Um pé de milho (1946)
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